Papo Cabeça

Estava eu voltando do trabalho pra casa, num Perdizes-Miruna cansado às 5 e tantas da tarde, sentada milagrosamente em um dos bancos da frente, um daqueles que ficam antes de passar pela catraca, sem ser um dos reservados para idosos, gestantes ou deficientes. Um jovem sentou ao meu lado, e assim como eu seguiu seu trajeto mudo e calado; ele concentrado na linda paisagem urbana que a zona Aeroporto-Moema-Jabaquara oferece, e eu dividindo atenções entre minha playlist do celular e uma revista. Mas não foi com ele meu papo.
  
O jovem saiu do banco ao meu lado em um momento que tinham pessoas saindo pelas janelas, mas que logo desceriam na próxima estação do metrô. Uma senhora sentou em seu lugar, ao meu lado. Era uma oriental, de estatura similar à minha (baixa, caso não saibam), vestindo um longo traje claro e florido. Tinha em mãos uma grande Bíblia encapada, cheia de papeis entre as folhas e acompanhada de um pingente médio de algum santo. Seria notada de qualquer maneira, mas fez questão de sentar ao meu lado comentando, enjuriada, sobre um homem que havia "encostado" nela. Ela estava completamente indignada a respeito de como ele teve a capacidade de pensar em se aproveitar dela, sendo ela uma "velha com uma Bíblia na mão" - como ela mesma colocou. Sua revolta era tanta que ela se sentia muito incomodada em estar próxima do tal homem, mesmo já sentada; e assim eu ofereci meu lugar à janela a ela. Depois de muito me agradecer, a senhora ficou visivelmente aliviada, e com um sorriso que não lhe saiu mais do rosto, começou a conversar comigo. Lamentou com tristeza o fato de não respeitarem idosos nos coletivos, citando exemplos de quando já teve seu pedido para se sentar negado por jovens da minha idade.  Por diversas vezes ela me perguntou se ela não me incomodava, já que eu estava inicialmente com os fones de ouvido e a revista em mãos. É claro que respondi que não, o que de fato foi sincero. Ter sido a pessoa com quem uma senhora no alto de seus 77 anos de experiências a qual ela depositou confiança a ponto de mostrar a foto dos filhos e netos, foi deveras gratificante.

Ela me contou de tudo um pouco sobre sua vida.Me revelou sua idade que de fato me surpreendeu, quando parecia ter no mínimo 10 anos a menos e estava mais lúcida e vibrante do que eu, enquanto puxava suas próprias bochechas indicando que estavam saudáveis e cheias de elasticidade. Me contou sobre sua vida religiosa, e do tempo que é devota à sua crença. Me perguntou se eu também era adepta à religião, e eu disse que não - o que não a intimidou. Continuou a falar sobre suas experiências mais marcantes e até conversas com o padre de sua paróquia, que a aconselhou escrever um livro sobre sua vida - nessa hora eu me empolguei e fiz o mesmo que o padre, coloquei mais pilha na ideia. Contou-me também do amor que sente por São Paulo e pelo Brasil, já que é natural do Japão, e citando seu país, entristeceu-se com a situação recente dos habitantes do país submetidos aos desastres naturais. Ela confessou detestar a Liberdade - bairro paulistano que mantém a cultura oriental por descendentes e imigrantes japoneses há anos. Me surpreendeu mais uma vez ao contar sobre os 4 filhos e 11 netos, e foi aí que abriu sua Bíblia gigante  tirando uma das fotos de seus filhos e alguns dos netos. Quanto orgulho ela sentia deles!

Chegando ao meu destino, ela lamentou, abaixando as laterais das sobrancelhas, o que me fez querer continuar a viagem pra ouvir mais e mais histórias. Ela se despediu sorrindo muito, dizendo que adorava conversar com moças como eu (o que ela quis dizer com isso cabe à nossa imaginação) e que adorou me conhecer - ainda que eu não tivesse dito muita coisa diante de um livro em forma de gente.

Deixo registrado então um tapa na cara de quem não dá atenção aos "velhos" e os tratam mal por aí: OUÇAM-OS. Metade da experiência deles derruba sua grande sabedoria de míseros 20 anos em poucas palavras. E lembre-se: amanhã você será um deles.

1 comentários:

Lindomar disse...
29 de março de 2012 às 18:55

Tive diversas experiências como esta sua, trabalhei 12 anos como motorista e cobrador de ônibus, e sempre fui fascinado pelas histórias de velhinhas e velhinhos que quando encontravam em mim um jovem disposto a dar-lhes atenção nem que fosse para um simples bom dia, sera notória a alegria estampada no sorriso deles.

E ai, quase sempre ouvia as reclamações que faziam a respeito de meus companheiros de trabalho que normalmente os tratavam e sei que tratam até hoje muito mal.
Coincidentemente, a memória mais viva que tenho dessas situações é a de um casal oriental também, que pegava o ônibus para ir à liberdade fazer compras de produtos típicos de sua cultura, e por vezes me contaram que esperavam o ônibus que em que eu trabalhava passar, pois sabiam o horário, para me dar umas balinhas que escrevendo agora pude sentir o gosto em minha boca,rs. E uns biscoitinhos deliciosos também.

Enfim, sempre percebi que eles eram muito gratos pelo simples fato de eu dar-lhes uns minutinhos de atenção dentro de um ônibus também.

E concordo com você, Nos achamos cheios de sabedoria por dominarmos as mais complicadas tecnologias, cheios do poder, e no fundo creio que a verdadeira sabedoria é a empírica que só pode ser adquirida com muitos e muitos anos de vida.....

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